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A fonte de Duchamp:
uma homenagem especial

Há um século nasceu uma obra que já trazia importantes questões e características do que hoje chamamos de Arte Contemporânea. Podemos dizer que este trabalho continha, assim, a semente de problemas atuais basilares, procedimentos artísticos como a apropriação, a discussão da autoria e o questionamento do sistema de arte. Esta obra chamava-se , criada pelo francês Marcel Duchamp (1887-1968), em abril de 1917. O mais impressionante da história desta famosa obra de arte é que ela jamais foi vista pelo público, pois nunca foi exibida e desapareceu logo depois de sua criação.

Para marcar a efeméride, no mês de março aproveitamos a oportunidade para celebrar a Fonte com uma exposição no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, A Fonte de Duchamp - 100 Anos da Arte Contemporânea, com obras exclusivamente do acervo do MARGS, peças estas que tratam de questões apresentadas pela icônica obra, há um século. Agora, nesta oportunidade, temos a comemoração dos 100 anos da Fonte com outra exposição, no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. Esta é também a minha primeira curadoria neste museu que ajudei a fundar e para o qual fui o segundo diretor, entre 1993 e 1994.

Nesta exposição, 25 vezes Duchamp: 100 anos A Fonte, temos obras de 24 artistas, sendo 22 deles com peças realizadas especialmente para a exposição, a exemplo de releituras da Fonte, de outras obras de Duchamp, bem como seus próprios trabalhos atuais ou anteriores, os quais integrados ao meu ver sob várias aproximações duchampianas. Somente dois artistas integram a lista com obras do acervo do MAC-RS.
A Fonte foi a continuação de experimentos vanguardistas que Duchamp fazia desde 1913, mais tarde chamados por ele de readymades, alguma coisa entre uma brincadeira, provocação e reflexão teórica. Em 1915, o artista radicou se nos Estados Unidos, inserindo se num centro mundial importante e longe dos horrores da I Guerra Mundial, a qual enfrentava o seu país. Em 1917, este enxadrista aficionado pelas jogadas arriscadas resolveu provocar ainda mais. Ele “fez” o readymade Fonte especialmente para ser exibido na Primeira Exposição Anual da Sociedade de Artistas Independentes, sediada em Nova Iorque. Duchamp era também um membro-fundador dessa entidade, cujo objetivo era organizar exposições de trabalhos dos associados.

Fonte era nada menos do que um simples mictório industrial de porcelana, comprado dias antes, em conluio com outros dois colegas da sociedade, Walter Arensberg e Joseph Stella, na loja J. L. Mott Iron Works. Sob o pseudônimo de “Richard Mutt”, Duchamp pegou o urinol e transformou-o em obra de arte com apenas três meros procedimentos: girou a peça em ângulo de 90 graus da posição original, assinou na obra “R. Mutt, 1917” e batizou- a “Fountain” (Fonte). Porém, a obra foi recusada pela organização da mostra (que ele mesmo fazia parte, mas não opinou) e a exposição foi inaugurada em 10 de abril de 1917. Assim, a consequência de sua provocação, a polêmica, foi o que alçou Fonte à canonização artística.

Ainda sem saber-se que Richard Mutt era, em verdade, um dos principais dirigentes da entidade, nas discussões da Sociedade de Artistas o conselheiro Duchamp não aceitou a recusa da inscrição do “Sr. Mutt”, afinal, ele mesmo. A revolta era porque o escopo da exposição era justamente a liberdade artística, pois cada artista mostrava o seu trabalho, e pronto. O regulamento da mostra era, simplesmente, “sem júri, sem prêmios”. Para participar, bastava aos artistas unicamente inscreverem-se na Sociedade. Com a polêmica, Duchamp renunciou ao seu posto na entidade, seguido por seu melhor amigo, Walter Arensberg.

Para marcar a posição – provocação – do “Sr. Mutt”, um desafio ao conceito de liberdade tanto da Sociedade de Artistas quanto ao sistema de arte, foi publicado um texto, em tom de manifesto, no número 2 da revista The Blind Man (16 páginas, maio de 1917), da qual Duchamp era um dos editores. “The Richard Mutt Case” explicitou o objetivo do envio de Fonte para a exposição e o significado da obra, ou seja, da atitude do artista. Constou reproduzida uma fotografia da obra feita por Alfred Stieglitz em sua galeria-ateliê, a única reprodução existente da peça (aparece nesta foto, ainda pendurada na Fonte, o cartão de inscrição da obra, preenchido por “Richard Mutt”). Após isto, Fonte sumiu completamente, pois nem Duchamp se interessou por ela, passando o artista a propor mais de suas provocações, sem se importar, pelo menos por enquanto, com a permanência física dos readymades.

A provocação de Duchamp, a par de todas as teses, histórias e especulações que giram em torno do readymade, de Fonte e dos demais, com o tempo reverberou e foi adquirindo maior importância. Em especial a partir da década de 1950, com a Pop Arte, e, definitivamente, nos anos 60 e 70, do Minimalismo à Arte Conceitual, linguagens que formam a base dos problemas do que hoje entendemos como Arte Contemporânea.

A provocação que vemos na arte do Séc. XXI, inclusive, o humor e, principalmente, a elaboração mental como características da arte contemporânea, tem em Duchamp a sua origem, em vários aspectos. Muito dos procedimentos construtivos da obra de arte nos últimos 60 anos tem nos readymades precedentes fundamentais: a apropriação de objetos, coisas pré-existentes, e o uso de técnicas industriais na feitura – ou montagem – das obras. O artista, assim, deixa de fabricar ele mesmo o trabalho, não o faz manualmente, pois somente elabora a ideia contida na obra. A arte como elaboração mental, sem que o artista faça a obra com as próprias mãos.

Há que se ponderar que Fonte e os demais readymades tinham como objetivo sacudir o meio das vanguardas, naquele contexto das primeiras décadas do Séc. XX. Propunha uma ideia ainda mais desafiadora do que as experiências mais radicais apresentavam, há 100 anos atrás. Em especial colocar em xeque a condição da criação artística e o sistema de arte: afinal de contas, quem decide o que é arte? Quais os limites da arte? Passaram-se 100 anos e vemos que esta problemática é praticamente uma premissa da arte contemporânea.

E o sistema de arte, com o tempo, não só não se sentiu incomodado com a provocação de Duchamp, como a canonizou. Hoje, existem nada menos do que 16 réplicas “oficiais” da Fonte, refeitas nos anos 50 e 60 com a autorização do artista (assinatura R. Mutt e autoria M. Duchamp), em museus e coleções das mais importantes pelo mundo. Obras sacralizadas, que ocupam a vigilância e os cuidados de poderosas instituições, centro de atenção dos respectivos acervos. Sem contar como atrativo de vandalismos organiza dos, como forma de denúncia desta condição a que dizem, os incomodados, ter “subvertida” a antiarte original de Duchamp.

Neste ano, em vários lugares do mundo, tivemos em museus e instituições artísticas o registro da passagem de um século de Fonte. Nesse sentido, no Brasil, como já mencionado, tivemos a homenagem com obras do acervo do MARGS, e, agora a presente mostra no MAC-RS, com obras de artistas convidados, a maior parte com trabalhos especiais para a ocasião.

São cerca de 56 obras de 24 artistas, cujos trabalhos relacionam-se com a natureza duchampiana, aos procedimentos propostos por este artista, em especial pelos readymades. As obras escolhidas assim apresentam características variadas com a herança de Duchamp, com trabalhos de caráter objetual, a apropriação de materiais e coisas preexistentes, a elaboração mental e não manual dos objetos, o humor, o jogo, a provocação e até mesmo a revolta com a situação atual da política e das instituições brasileiras.

Nestas obras exibidas no MAC-RS, assim como ocorreu antes no MARGS, não poderia ser diferente, temos variadas, simples e sofisticadas experiências artísticas, num universo de possibilidades que é uma das mais atrativas marcas da arte contemporânea, que a cada dia testa os seus limites. O primeiro a testá-los? Foi Duchamp, com seus readymades.

José Francisco Alves
Doutor em Crítica de Arte, membro da AICA

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