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A IMPORTÂNCIA DE UMA HISTÓRIA FEMINISTA DA ARTE CONSTRUÍDA ATRAVÉS DE EXPOSIÇÕES

Gaudêncio Fidelis

Em 2011, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS) realizou a primeira exposição feminista de sua história chamada O Museu Sensível: Uma Visão da Produção de Artistas Mulheres no Acervo do MARGS, que exibiu obras de 132 artistas mulheres de diversas gerações pertencentes à coleção do museu. Concebida sob uma perspectiva inclusiva não hierárquica da obra de artistas mulheres, seu principal objetivo foi explicitar algo que na verdade já sabíamos: a produção de artistas mulheres nas coleções do museu estava largamente relegada a uma condição subalterna, e as “grandes” obras canônicas do acervo do museu haviam sido produzidas por artistas do sexo masculino. O objetivo era, em última instância, trazer essa constatação a público por meio de uma exposição de obras e, ainda assim, assinalar a relevância dessa produção, mesmo que (em sua maioria) fora do padrão canônico.
Vários museus do mundo já haviam feito essa avaliação muito antes, e as conclusões foram as mesmas: as obras de artistas mulheres em suas coleções estavam largamente concentradas nas modalidades de gravura, cerâmica, arte têxtil, objeto e desenho. Muito poucas eram em pintura e escultura, as duas modalidades artísticas em que historicamente está concentrado o maior número de obras canônicas. Isso, é claro, não porque não existissem obras de artistas mulheres de relevância produzidas nessas modalidades, mas elas não foram (o que frequentemente é a regra) colecionadas com a mesma intensidade. Também, em muitos casos, essas obras colecionadas estavam longe, portanto, de serem as mais representativas da produção dessas artistas, e as mesmas lacunas existiam na representação de sua produção nas coleções do museu. Ainda que as ramificações resultantes dessas lacunas indicassem que essas ausências haviam gerado uma falta de institucionalização dessa produção e, por consequência, efeitos similares em outros acervos e exposições importantes, as obras dessas artistas acabavam não sendo incluídas.
Entretanto, a plataforma da exposição de O Museu Sensível não era de caráter puramente essencialista, mas, antes de tudo, estratégico. Seu primeiro objetivo foi fazer uma “averiguação” visível ao olhar público, do status e da presença da obra de artistas mulheres no acervo do museu e o segundo, por intermédio dessa avaliação, promover o urgente preenchimento de lacunas presentes em suas coleções. Urgente, imediato e imprescindível, sobretudo no tempo limitado do esperado espaço/tempo de quatro anos de uma gestão pública. Não por outra razão, durante a gestão MARGS 2011-14, investimos em uma política de aquisição em larga escala com o objetivo de preencher essas lacunas. Durante aqueles quatro anos, cerca de 900 (novecentas) obras foram adquiridas para o acervo por meio de aquisição por compra, permuta e doação. Muitas delas foram obras de artistas mulheres que preencheram lacunas históricas, obras estratégicas pela sua dimensão artística e estética localizada no tempo, bem como obras colecionadas também pela sua dimensão política que implicava, inclusive, o próprio ato de colecioná-las, o que acabou preservando-as para gerações futuras. Um dos textos do catálogo da exposição O Museu Sensível, intitulado “A História da Arte Contada Através de Ausências: Uma Visão Crítica do Colecionismo da Obra de Artistas Mulheres no Acervo do MARGS”, traz um exaustivo número de dados sobre a aquisição de obras de artistas mulheres, desde a fundação do museu até o final daquela gestão.
No entanto, O Museu Sensível não foi apenas uma exposição sobre a perspectiva feminista de identificar manifestações visíveis de exclusão, negligência ou ausência somente por motivações políticas e históricas frequentemente conhecidas. Tratava-se de uma abordagem mais complexa do problema. Em geral, os museus têm mostrado certa inclinação para colecionar obras baseadas sobretudo na equação “relevância versus espaço físico”, devido aos custos de preservação e manutenção de obras. Estou falando de uma regra que raramente é discutida de forma clara e, na maioria dos casos, adotada sem um critério baseado em dados reais. Embora o critério relevância seja sempre passível de discussão, esse ajuste ocasionado pelo “hábito” transformou-se em uma rotina histórica. É preciso, portanto, acionar as profundas razões que levam a institucionalidade (com tudo que ela representa, incluindo aquela gerada pelas especificidades do aparato museológico) a constituir uma rotina pervasiva de negligência com a produção de artistas mulheres e outras produções marginalizadas (queer, de afrodescendentes, de pessoas com deficiência, obras que abordem os sentidos, como a audição, por exemplo, entre outras localizadas em diferentes registros, tais como a produção de períodos ignorados pela historiografia). Diante de um quadro que parece tão desafiador, a urgência de construir estratégias de colecionismo planejadas a curto, médio e longo prazos em museus é fundamental no contexto museológico brasileiro.
Talvez, um dos principais desafios seja identificar os hiatos históricos e contemporâneos e, inclusive, aqueles que se adiantam ao futuro de institucionalização de determinadas obras, já que se sabe que algumas delas tornar-se-ão indispensáveis rapidamente assim como obras históricas, especialmente porque essa identificação demanda uma disposição a priori de colecionismo direcionado para essa produção. Além disso, é preciso buscar no mercado e com os colecionadores obras que agora já não estejam mais sob a posse de artistas e que precisem estar em coleções museológicas devido ao interesse público que elas possuem. Para tanto, é necessária uma estratégia planejada que vislumbre um acervo como um todo, mas levando em conta principalmente uma visão abrangente da produção artística.
Essa tarefa deveria vir sempre seguida de um extenso programa de exposições, firmado em uma plataforma de exibição qualificada de obras, produção e geração de textos (ou seja, de conhecimento), e igualmente acompanhada pela realização de publicações sobre essas exposições e obras. A tarefa pareceria hercúlea, mas na realidade depende mais da vontade e da disposição política do que qualquer outra coisa. Ela depende também da adoção de uma rotina museológica clara. Afinal, para que existe uma instituição museológica senão para, antes de tudo, estabelecer e colocar em movimento uma rotina capaz de gerar conhecimento original e garantir a preservação e visibilidade da produção artística?
Uma política de aquisição museológica para a obra de artistas mulheres não só preserva essa produção, como também gera um conjunto de possibilidades de exposições, pesquisa e disseminação de conhecimento sobre tais obras, contribuindo enormemente para uma história feminista da produção artística. Chamo de história feminista porque, antes de tudo, ela possibilita uma perspectiva inovadora para reposicionar o olhar (gaze) sob uma visão de enquadramento que não seja exclusivamente normativa. Uma história cujo compromisso se articule sem as grandes preocupações formalistas e não esteja comprometida especificamente com os grandes gestos, ao contrário, mais com a singeleza de uma intervenção firmada nos gestos discretos.
Dito isso, nosso foco agora é o universo da exposição Fora das Sombras: Novas Gerações do Feminino na Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, com curadoria de Ana Zavadil, e sua dimensão artística e política neste momento da vida contemporânea, sobretudo brasileira. Primeiro, porque ela é (em grande parte) o resultado a longo prazo (nove anos depois) da sistemática e consistente política voltada para a produção de artistas mulheres que o MARGS desenvolveu e que encontra agora ressonância curatorial no Museu Oscar Niemeyer (MON) com esta exposição.
A curadora Ana Zavadil foi nomeada curadora-chefe do MARGS em 2013 e com esse ato e seu subsequente trabalho no museu aprofundou-se em uma política de exposições e acervo de caráter feminista que resultou não somente em exposições monográficas de artistas mulheres, algumas delas acompanhadas de extensas publicações, mas também uma segunda exposição de grande envergadura, Útero, Museu e Domesticidade: Gerações do Feminino na Arte, realizada em 2014. Com o final daquela gestão, a curadora continuou realizando, de maneira independente, um conjunto de exposições sobre a obra de artistas mulheres da qual esse projeto no MON faz parte.
Se há pouco tempo possamos ter tido a impressão de que exposições feministas ou de artistas mulheres (que por natureza são igualmente feministas) haviam esgotado seu potencial sentido de intervenção, hoje, meio que de súbito, vemos a necessidade, se observarmos bem, de que elas (mais do que nunca) continuem a existir. Uma nova fase de ataque às mulheres adquire forma com clareza e distinção, uma vez que se mostra tendo novamente como centro uma nociva batalha de gênero, especialmente centrada na diferença ou, melhor dizendo, no aspecto diferença da equação de gênero.
Não por outra razão do que aquela historicamente reconhecida, as mulheres mostram-se mais uma vez como o ponto mais fraco na cadeia de lutas pelo espaço simbólico da representação e, por consequência, de um belicoso campo de divisão de disputas, cujo impacto nas relações de trabalho, direitos civis, direitos humanos, justiça social e, como não poderia deixar de ser, a arte, já se mostrava considerável. Isso se contabilizarmos uma nova e recente investida contra a mulher como um indivíduo constituído de corpo, existência humana e instrumento, portanto, de intervenção política na esfera pública. O mundo foi tomado (mais recentemente) por um novo estágio de disputas pela existência, uma em que o gênero é (mais uma vez) o centro, caracterizando-se pelo redimensionamento de uma dúvida sobre a existência científica das particularidades que o definem como uma categoria estabelecida fora da dimensão biológica da constituição de um corpo.
Uma pergunta que parece nunca ter sido suficientemente (ou claramente) respondida é o porquê o corpo da mulher tem sido historicamente essa zona de batalha incessante. Talvez, porque, na construção histórica resultante da consolidação de lutas pelos direitos mais elementares da existência, as mulheres transformaram-se em um “corpo volátil”, sempre um alvo de consolidação da representação, sempre instável portanto, diante do mundo político em que essa estrutura da representação busca assentar-se.
Por que é então cada vez mais imprescindível realizar exposições de artistas mulheres, depois de (recentemente) muitos de nós acharmos que tais exposições estariam conceitual e estrategicamente obsoletas? Afinal, do que se trata expor o “feminismo” como uma categoria intervencionista ou metodológica da história da arte ou “colocá-lo em exposição como estratégia curatorial? Quais estratégias seriam as mais eficientes para fazê-lo? E, ainda, como fazê-lo quando tantas modalidades de exposições parecem apenas confundir o terreno pela sua forma apenas dissimulada (ou seja, uma mera desculpa) de organizar obras sobre determinada rubrica sem uma clara intenção?
Precisamos brevemente retroceder à noção de ideologia, concebida por Althusser, como um “complexo” de práticas de representação, construídas sob os auspícios de estruturas discursivas que possibilitaram sua inscrição em um espectro de gênero. De modo concomitante, a psicanálise possibilitou a revelação no campo social da performatividade que conhecemos hoje como diferenciação sexual e expressão de identidade de gênero. O surgimento de um sujeito consciente da instabilidade das posições de gênero seria então o próximo estágio desse processo.
É possível, portanto, que todo esse empreendimento pudesse ser fundado em cima do corpo da mulher como um construto da representação? Seria, nesse caso, então, uma forma especular da representação como manifestação da ideologia? Ou seria, talvez, pelo fato de que esta possui um inerente componente de disfarce (ou distração), fazendo com que não consigamos atravessar a opacidade dessa pergunta e identificar a “função” do dispositivo ideológico que a alimenta, ao mesmo tempo que passamos a ter uma maior dificuldade de interpelar o sujeito (igualmente nos termos de Althusser), um sintoma de que estamos enfrentando uma crise interna referente ao processo ideológico?
Embora a ideologia seja imune a influências externas ou à sua própria base estrutural, já que ela se alimenta como uma forma de autorrepresentação (se de fato este é o caso), o perigo reside em uma desestruturação do substrato que regula a dimensão mimética da construção ideológica, aquela que faz refletir a experiência representacional do sujeito na relação de vínculo entre o real e a estrutura discursiva que o produz. Trata-se de uma operação de alto risco. Produzir instabilidade em um subproduto da ideologia poderia causar resultados catastróficos. Esse substrato ideológico que sustenta a dimensão instrumental do feminismo como uma categoria operacional circunscrita sob a especificidade de gênero, constantemente redimensionada como uma operação política da representação, passa a assumir, assim, uma dimensão alegórica, um fenômeno estrangeiro à estrutura da ideologia e, portanto, suspeito de ineficácia intervencionista no mundo da cultura, quando se trata de vincular a ideologia a um campo de existência inscrito na aparência do real. Contudo, a verdade é que ela existe como uma manifestação da dimensão especular das forças do poder na exata medida em que são a expressão de uma retórica exercida na tentativa dessa característica funcional que lhe é peculiar.
Para contrabalançar tal caracterização cultural, caso não seja invocado um reconhecimento de sua existência sociotemporal, ou seja, aquele que consiga articular um fluxo contínuo da própria história das exposições feministas, é preciso que essa continuidade seja posta em movimento. Apesar de todos os efeitos resultantes desta exposição, ela se torna fundamental como um modo operacional de eficácia diante das particularidades dessas exposições feministas e do que elas representam e asseguram para a produção artística e para a arte.
Assim, quase uma década depois de sairmos de uma condição em que uma exposição sobre a obra de artistas mulheres era (ou deveria ser) uma necessidade de política museológica voltada para a produção de conhecimento, agora sua urgência é ainda maior. Como se não fosse pouco, é preciso advertir igualmente para o perigo crescente da censura, dos ataques e da criminalização da arte e dos artistas, do acirramento do conservadorismo na política de muitos museus e instituições e de um vertiginoso movimento em direção às categorias de gênero como um centro de ataque, conforme já foi visto.
Um dos maiores desafios desses próximos anos será combater a profunda intervenção que vem incidindo sobre as diversas áreas de atividade artística e cujo impacto vem modificando de modo gradual as premissas do que possa ou não ser concebido ou “aceito” como arte. O mais grave de tudo isso é a consolidação da ideia de que determinados assuntos de abordagem da arte vêm progressivamente sendo deslocados para o campo do tabu e, portanto, sendo categorizados como proibitivos. Sistematicamente, estamos vendo a arte transformar-se em uma concepção da ideia de “arte com limites”. Entretanto, sabemos que a arte é arte quando estiver testando o que é passível (ou não) de limites para além e não aquém deles (circunstancialmente no caso de algumas obras). Conceber determinados assuntos como tabu é ingressar em um processo de impedimento de realizar determinadas obras por tal imposição, é, portanto, promover a autocensura. Impô-lo diante da arte é promover na realidade a própria censura.
Já em 1913, desde a publicação de “Totem e Tabu”, de Sigmund Freud, que formulou de maneira mais elaborada o “problema das proibições”, foi possível entendermos o seu impacto na censura, bem como as complexidades culturais que este é capaz de produzir. Agora, a equação (outrora resolvida) ressurge sob a égide de dois dos mais importantes dispositivos de “justiça cultural” que haviam sido conquistados e recentemente ficaram conhecidos como “tradução cultural” e “especificidade cultural”, que aparecem ocasionalmente sendo usadas contra o universo da produção artística, tragicamente impondo a ela uma danosa limitação criativa, algo inconcebível apenas alguns anos atrás. As obras correm o risco de não poderem mais se deslocar de contexto sob pena de serem erroneamente e, em muitos casos, intencionalmente interpretadas, resultado de uma estratégia de legitimação política, que está completamente fora das preocupações com a arte. Hoje, temos mais proibições contra a arte do que em relação a qualquer outra manifestação do conhecimento.
Sob o enorme risco de enfrentarmos publicamente o avanço de políticas ultraconservadoras redefinidas e colocadas em movimento dentro de uma geopolítica psicossocial e sociopolítica que não é só localizada no país, mas também generalizada no mundo, exposições como estas transformam-se em um manifesto a favor da liberdade artística. Mais do que nunca, faz-se necessário que as “histórias” feministas sejam contadas por conjuntos de obras como uma forma de resistência, não obrigatoriamente do trabalho e de suas abordagens temáticas, mas da força de mobilização, ou melhor dizendo, de engajamento da arte como instrumento de luta política.
Uma exposição feminista é, antes de tudo, constituída pelo fato de “representar”, mostrar e abordar outras estratégias afins: a obra de artistas mulheres. Hoje, vencidas as lutas históricas que motivaram exposições de caráter feminista (embora elas tenham sido escassas no Brasil até a década passada, e ainda são, se comparadas a outros lugares do mundo), temos a oportunidade de migrar para um campo de abordagem em que a organização de tais projetos se institui na forma de um critério de jurisdição do conceito menos essencialista.
Uma exposição que seja realizada com a produção de artistas mulheres é, por natureza, de caráter feminista. Se essa exposição, por meio de uma continuidade (pregressa por assim dizer) liga-se organicamente a um conjunto de intervenções expositivas que busquem um lugar para a produção de artistas mulheres, ela colabora para construir a história dessa produção ao longo do tempo. Em um esforço adicional, essa história é, por conseguinte, feminista do ponto de vista da produção artística.
Tal contribuição à História da Arte (ou história da arte) é sempre significativa, ingressem tais obras ou não nas grandes narrativas, e é bem possível que não venha a ser o caso. No entanto, este não seria o objetivo principal a ser perseguido de qualquer modo. Uma história constrói-se pelo acúmulo de “massa crítica” gerado pelo corpo de obras de uma exposição. Se esta for capaz de arregimentar um considerável volume de conhecimento sobre a produção que exibe, mais bem-sucedida ela será. Lembrando que esse conhecimento não é produzido exclusivamente pela geração de um universo teórico sobre a produção, mas pelos modos de exibição, display, modelo curatorial, justaposição de obras e inclinação política que esta possa ter. Mais do que exposições com um enquadramento feminista, estas têm uma importância e são até mesmo fundamentais pelo seu caráter artístico.
Enquanto minha produção curatorial e de historiografia poderia ser caracterizada por aquela de um historiador da diferença, seja ela inscrita nas formas artísticas da não normatividade ou na consideração do gênero como uma condição política interveniente ao campo social, tenho feitos inúmeros esforços de inclusão ao longo desses anos de trabalho. Em meio a abordagens, como a realidade material dos objetos, a obra de artistas mulheres, os interstícios da percepção pela cor, abordagens dos sentidos, as imbricações da memória e da matéria, bem como as formas transgressivas e não canônicas do queer, minha percepção é de que a historiografia crítica e a curadoria possuem aspectos ainda pouco explorados, quando se trata da diferença; ainda que exposições como a Queermuseu, por exemplo, assim como outras exposições (nesse caso, feministas pregressas), tenham produzido um avanço estrondoso nesse sentido. Chega a ser difícil mensurar o impacto que tais exposições produziram no seu tempo e o que teria sido do contexto em que vivemos em relação a tais abordagens (a diferença, por exemplo, ou a expressão de identidade de gênero) se tais exposições não tivessem sido produzidas.
Há tempos que a “diferença” ultrapassou o âmbito da sexualidade e ingressou em todas as formas de cultura, incluindo sua expressão fora do exercício do corpo no campo sociopolítico, como as formas artísticas. Não por outra razão, é preciso agora ingressar em plataformas conceituais que almejem um substrato não normativo da atividade curatorial. Não mais somente pelo “olhar” essencialista da produção, mas especialmente pela dimensão desassociada dela, vinculada a uma transitividade, cuja orientação produz um sentido de vínculo com a noção de diferença, gerando, assim, um campo articulado com a experiência de gênero.
Por esse motivo, tenho lutado e advogado em nome dessas exposições como fiz mais uma vez com este projeto para o MON, nesse caso, como membro de seu Conselho Cultural. Há muitos anos que essa consciência antecipada de uma urgência me acompanha (esse senso de urgência, melhor dizendo). Com ele, a clareza de que essa produção representa ou gera uma “ocupação” estratégica imperativa. A urgência consiste em perceber que a produção artística não pode ser tomada como conjunto de objetos “ingênuos”, cuja circulação faz ou não diferença ou possui ou não importância, como se essas obras fossem o resultado de uma ocasional e acidental existência. Trata-se do contrário, de objetos de grande relevância artística, cultural, estética, histórica, política e criativa. Poucos objetos produzidos pela atividade humana, como obras de arte, possuem tais características inerentes ao seu conjunto. A natureza dessas exposições feministas as situa, portanto, em um universo de profunda transformação, uma que ainda poucos são capazes de compreender e apreciar, tanto por sua dimensão artística como política.
É possível que, por meio da experiência expositiva de caráter exploratório, tais projetos gerem um significado maior do que muitas vezes é esperado pela sua audiência. Muito dessa experiência se caracteriza pura e simplesmente pela veiculação de um conjunto de possibilidades de investigação curatorial que se altera no próprio ato de realização da exposição, ou seja, quando as obras ingressam no espaço e ocupam seus lugares na galeria. É dentro dessa dinâmica que a importância de exposições feministas como esta se situa. Cabe lembrar que uma futura genealogia da produção artística da obra de artistas mulheres será sempre imperfeita, mas se trata de algo positivo. A abertura para novas inclusões sempre será bem-vinda e poderemos, assim, invocar a constituição de uma narrativa histórica em andamento (in progress).
Com certeza, uma teoria feminista de exposições trará insights cruciais, sobretudo se adotarmos adicionalmente a esse caráter feminista uma ocasional perspectiva queer de abordagem que sirva para examinar a condição da forma (como um repositório político-representacional da diferença), invocando (de certa maneira) uma estratégia de experiência intervencionista da história, fora dos modelos não essencialistas das particularidades (afinal, é exatamente isso que o essencialismo é). É assim, por exemplo, que foi exaustivamente anunciado, a priori e a posteriori, que uma exposição como a Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira não era essencialista e radicalmente se distanciou de uma proclividade essencialista. Essa afirmação conceitual da plataforma da exposição foi erroneamente entendida na época como uma atitude regressiva, uma vez que, na perspectiva de muitos “especialistas”, ela se distanciava de uma tradicional (e porque não dizer acadêmica e conservadora) visão de exposições feitas para representar segmentos da comunidade artística e, por extensão, refletir essa forma de representação dos diversos extratos da sociedade.
Considerando ainda o impacto museológico desses projetos curatoriais ao estabelecer uma trajetória de circulação desses objetos dentro de museus, é importante salientar o impacto causado pela arte como aquele que reivindica o legado artístico das formas e de sua institucionalização. É mais do que relevante possibilitar que essas obras existam na esfera política, devido ao fato de serem representativas na produção dessas artistas. A força de trabalho transforma-se então naquela da arte. Tal caracterização dessa dimensão profundamente cultural é em essência uma socialização criativa do trabalho artístico, capaz de desativar em parte os resultados nocivos (contraproducentes) do mundo belicoso por trás da exploração da mais-valia.
É possível constatar, depois de todos esses anos, o impacto dessas exposições. A obra dessas artistas fortaleceu-se, consolidou-se e avançou em seu potencial de manifestação artístico (cultural, político, histórico, estético, conceitual, etc.), e ela vem dando contribuições significativas ao campo da arte. Se pensarmos que a razão da existência dessas exposições reside justamente nisso, os resultados são mais do que satisfatórios.

*Gaudêncio Fidelis é curador e doutor em História da Arte. Professor Associado de História da Arte, no programa de Arte e História da arte do Hunter College, da Universidade do Estado de Nova Iorque.

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