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A parte da água

Ana Maria Albani de Carvalho

As imagens suscitadas pela água são da ordem do fugidio e do transitório. Não possuem a solidez ou a permanência que associamos à terra e às pedras ou, ao vigor e à vivacidade aos quais somos remetidos quando estamos diante do fogo. Seu caráter fluido e informe não facilita o trabalho de descrição, nem sequer sua transformação em matéria poética. Ao tentar imaginar a água, as palavras escorrem entre os dedos. Rimas tortuosas e metáforas ligeiras assombram o poeta que se aventura por suas margens. Pintar ou desenhar o elemento água também não é tarefa para iniciantes. Sua horizontalidade plácida ou sua fugacidade mutante não se rendem às formas ou às técnicas de representação corriqueiras.
Por outro lado, observar o movimento aparente das águas de um rio ou o vai e vem das ondas na beira da praia tem qualquer coisa de hipnótico. Aos poucos, o ritmo da água se impõe e adquire um tipo de poder sobre nossa percepção e sensibilidade. Embalados pelo canto da sereia, nossa mente – sempre tão alerta ou inquieta – flutua e, aos poucos, descansa, esvaziada do burburinho provocado pelos pensamentos rotineiros, concretos. A percepção - ser e sentir, ver, ouvir e tocar - assume sua efetiva dimensão. Como argumentava o filósofo Merleau-Ponty, “o sensível não tem apenas uma significação motora e vital, mas é uma certa maneira de ser no mundo que se propõe a nós de um ponto do espaço, que nosso corpo retoma e assume se for capaz, e a sensação é literalmente uma comunhão.” Neste ponto, podemos atingir o estado de atenção-plena definido como contemplação, um tipo de conduta que pode ser experimentado tanto em contato com a natureza, quanto com os objetos da arte. A diferença é que, no caso da obra de arte, existe intencionalidade estética que preside as opções formais e técnicas produtoras de sentido.
A opção de Ana Norogrando pela videoinstalação como modalidade de espacialização para o conjunto de trabalhos apresentados nesta exposição está diretamente relacionada ao desejo de potencializar esse tipo pleno de experiência durante o contato do espectador com a obra. Como o termo indica, uma videoinstalação associa a um trabalho que explora a linguagem do vídeo – de modo geral, imagens em movimento – em um tipo de disposição no espaço expositivo que envolve a questão da montagem em sua dimensão contextual. Não se trata de observar um quadro como um objeto independente do aqui e agora deflagrado pela própria experiência de estar diante da obra e, sim, de considerar a vivência do espectador no momento em que a contempla como parte do processo que faz de uma imagem uma obra de arte.
O processo de trabalho da artista envolve uma escolha meticulosa do momento e do lugar para a captura das imagens de água e do pôr-do-sol. A luminosidade e as condições climáticas devem ser precisas, viabilizando a tomada de imagens em um mesmo ponto geográfico – um local determinado, às margens do Guaíba, em Porto Alegre – e, mesmo assim, apresentando uma ampla gama de cores, tonalidades, jogos de luz e sombra. Concluída a etapa de coleta das imagens, chega-se ao momento da edição, montando sequências segundo um determinado ritmo visual e se agrega a parte sonora, com ruídos do ambiente natural, como o som da própria água - mais calma ou revolta -, de um pássaro ou do latido de um cão. As sequências de imagens em movimento são, por fim, especializadas como instalação, isto é, consideram o lugar em que a montagem será realizada no recinto de exposição como elemento integrante da obra.
Assim, tendo como assunto principal dois elementos aparentemente banais como a água e o pôr-do-sol, o dispositivo composto por imagem em movimento – montagem – lugar promove um curto-circuito na economia do olhar convencional, acostumado ao ritmo ditado pelas mídias convencionais. Ao operar com o ritmo lento, com as nuances sutis de cor e luminosidade e com a proposta de atenção plena, as videoinstalações de Norogrando demandam outra forma de contemplar imagens, distante do ritmo acelerado e da leitura esquematizada que caracterizam nossa relação com a televisão ou com os jogos de computador.
Por fim, apesar de empregar equipamentos e tecnologias contemporâneas como o vídeo, a artista produz uma experiência visual que remete à pintura e à história crítica desta linguagem artística, nos termos como opera com a cor e com a bidimensionalidade da imagem. A cor preenche o espaço e aciona um modo de ver reconhecido através da prática da pintura. Concluindo, as imagens suscitadas pela água não se resumem à superfície aparentemente tranquila dos lagos em dias sem vento. Assim, as imagens suscitadas pela água podem ser densas e profundas.


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