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Tessituras circulares: um resgate da arte têxtil de Ana Norogrando

Um texto curatorial tem como propósito apresentar os conceitos que pautam uma exposição, seu eixo de escolhas e os elementos que baseiam o conjunto da obra curada. Peço licença, inicialmente, para traduzir minhas percepções em primeira pessoa, o que raramente faço, mas ao entrar no atelier de Ana Norogrando, pareceu difícil tornar visível, num recorte pontual, a experiência visual e sensorial vista e proposta pelo vasto conjunto da obra da artista. E sem dúvidas, também é difícil a imparcialidade do olhar de quem aqui escreve. O desafio dessa curadoria foi apresentar uma parcela mínima do universo criativo de uma artista múltipla que, ao longo de cinco décadas tem construído um acervo ímpar que vai desde a arte têxtil ao vídeo, tendo a escultura como sua maior referência.
De imediato me veio em mente o texto “A gaveta dos guardados”, de Iberê Camargo, que atribuía à essa expressão a ideia de memória. Curiosamente, Ana revela de imediato, que a obra visceral da sua produção têxtil, estaria exposta na fundação de Iberê e as conexões se tornaram mais certeiras: o resgate da obra têxtil de Ana Norogrando, neste momento, deveria revisitar o início da carreira dessa artista mulher, gaúcha, e que sempre buscou reflexões femininas e feministas em objetos esquecidos, descartados, invalidados, refeitos, reorganizados e tornados outro, e no fazer criativo da artista, transfigurando formas, lugares e pensamentos acerca do corpo, da sua imagem pré-concebida e desdobrando diferentes linguagens escultóricas, livres de qualquer enquadramento.
Não por acaso, a escolha do conjunto têxtil para esta exposição exalta, indiretamente, o fazer feminino, num recorte de obras que desmontam a ideia de fragilidade que o termo “feminino” aponta, já que, tecer e tramar estruturas metálicas envolve a energia e a força exigida pela matéria, logo, não cabem adjetivos que possam diminuir essa força, determinada, historicamente, pelas questões de gênero.
O termo têxtil comumente é associado a materiais maleáveis, moles, tecidos e vestidos, e, pode-se dizer que durante muito tempo esteve mais vinculado à esfera artesanal do que da arte contemporânea. Não adentrando nas diferenças e longe de promover um debate acerca da natureza fim de cada uma dessas esferas, a obra de têxtil de Ana Norogrando não se propõe ao contexto utilitário e por si só, afasta-se de qualquer possibilidade de associação ao fazer artesanal. Sendo as ações de tecer e tramar consideradas atividades femininas desde a antiguidade, também coube à literatura a atribuição do caráter simbólico de tais ações. A mitologia ressignifica essas ações: fios e linhas, metaforicamente estão associados à vida e aos seus diferentes percursos; figuras femininas tecem ou rompem destinos, como as moiras Cloto, Láquesis e Átropos, que decidem o destino dos mortais ou por sua vez em narrativas visuais tecidas, tal qual faz Aracne frente à Atena e ainda, direcionam caminhos como fez Ariadne no labirinto do Minotauro. Desígnios concretizados ou rompidos nas mãos que tecem.
E, dos desígnios ao design, conceitos da ordem do feminino perpassam as tessituras de Ana Norogrando, desde a ligação da sua própria origem de gerações passadas, resgatando o poder e a força das tramas e tecidos produzidos por mulheres ao longo da história, às referências ancestrais gaúchas das cestarias indígenas e das dressas de origem italiana, ambas culturas que insistem em resistir às transformações contemporâneas e ainda presentes na nossa região. O pioneirismo de Norogrando, que tem ainda, no final dos anos 1970, o ponto de partida, vem reverberar na consolidação de uma linguagem ancestral que hoje, passa a ter maior visibilidade e valor no universo da arte. Sem saber, naquele momento, a obra da artista se aproximava da ideia cunhada pela historiadora e crítica de arte Rosalind Krauss, enquanto publicava um dos seus textos mais sublimes, “A escultura no campo expandido”. À sua maneira, Norogrando dialogava com as mudanças acerca do objeto tridimensional descaracterizando o que nos acostumamos a chamar de escultura, rompendo com as definições pré-concebidas entre o objeto escultórico e a ideia bidimensional daquilo que até então, era entendido como têxtil.
Torna-se necessário este retrospecto, para que não tenhamos uma visão retrovisora do trabalho da artista e sim, contemporânea e prospectiva.
Assim, a exposição, conforme seu título, vem resgatar pontualmente as tessituras circulares têxteis de Ana Norogrando, pensadas e construídas no movimento, na ação do tempo e que pode ser traduzido nas mais diversas formas simbólicas que o círculo emana, bem como vem desvelar, após mais de três décadas da sua concepção, uma história que queremos apresentar ao público e especialmente aos nossos estudantes, já que na sua essência, conecta-se ao design, à moda e aos inúmeros conceitos interdisciplinares que envolvem a materialidade, a sustentabilidade, e as relações entre o fazer da mão e das tecnologias.
Ana Norogrando esteve na Universidade de Caxias do Sul em 1992, na antiga Galeria de Arte da Biblioteca Central, dividindo o protagonismo com outros quatro artistas gaúchos. Nessas três últimas décadas, consolidou uma trajetória como artista/professora/pesquisadora e esse caminho vem de encontro ao que idealizamos profissionalmente aos nossos estudantes: poder fazer da arte um motivo existencial compartilhado com o outro. O reencontro demorou, mas está feito.

Silvana Boone

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