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FORA DAS SOMBRAS: NOVAS GERAÇÕES DO FEMININO NA ARTE CONTEMPORÂNEA DO RIO GRANDE DO SUL

A exposição tem o objetivo de reunir a recente produção de 40 artistas mulheres do Rio Grande do Sul. O seu eixo curatorial está fundamentado na escolha das obras que possam suscitar questões para ampliar pesquisas referentes à inclusão de outros pontos de vista na historiografia da arte dessas artistas, na história atual. Além disso, tem o intuito de propiciar condições de visibilidade que contemplem as perspectivas de trabalho dessas artistas e que sejam capazes de dar forma às problemáticas e às urgências que sua produção requer.
A exposição apresenta 140 obras que se constituirão como fonte de resistência e poder dentro do cenário da produção de artistas mulheres vigente, muitas com um caráter feminista. A arte deve potencializar a militância artística coletiva pela busca de respeito, igualdade e diversidade, atravessar de uma vez por todas o denso muro que separa ignorância e valores do sistema patriarcal, bem como reconhecer a qualidade indiscutível da obra de mulheres e o seu lugar na sociedade como um todo, em que ela deve andar pari e passu com o homem e não mais à sua sombra.
O estereótipo feminino é um conceito sustentado em uma abordagem equivocada da diferença, pois nunca se fala arte de homens ou homens artistas, simplesmente arte e artistas. Essa prerrogativa de gênero, muitas vezes escondida, fala de outro – “o feminino” – como um ponto de diferenciação. A arte feita por mulheres é mencionada para logo ser depreciada, justamente para garantir essa hierarquia.
As obras desta exposição apresentarão a produção de pesquisas individuais de todas as artistas. Como não são orientadas por um conceito específico, trarão problemas relacionados às vivências pessoais ou autobiográficas e às questões políticas, sociais ou de gênero. O conjunto de obras trará à tona as instâncias ideológicas do cânone, a exclusão das minorias da historiografia da arte e a crítica à instância museológica vista como essencialmente masculina.
O horizonte de visibilidade que cerca a vida das mulheres repete-se através da história e em pleno século XXI continua muitas vezes preso à sua identidade de dona de casa e mãe. Herança da burguesia, o patriarcalismo, fundamentado na constituição da família, impôs às mulheres o papel reprodutivo que frequentemente as privou do poder e da voz. A história da mulher na arte acompanha a mesma problemática, mas aos poucos se abrem frestas nessa paisagem na busca de ultrapassar obstáculos e romper com a cegueira que perdura sobre a percepção da obra de artistas mulheres por séculos. As mulheres, nas academias de arte do século XVIII e XIX, foram impedidas de pintar gêneros artísticos de maior relevância, como os nus, confinando-as a gêneros considerados menores, como a natureza-morta, o retrato e a paisagem. A desigualdade entre artistas mulheres e homens foi tomando forma cada vez mais desigual. Muitas artistas mulheres faziam parte dos livros sobre arte até o período em que os escritores modernos negaram as suas existências. Segundo as historiadoras Parker e Pollock, “o gotejamento de referências às mulheres artistas no século XVI cresce até o século XVIII, até tornar-se uma inundação no século XIX”; curiosamente, os trabalhos sobre mulheres artistas começam a diminuir no período de aumento de emancipação social e da educação, momento em que deveria ter se intensificado a sua participação em todas as áreas da vida social.
Em 1971, em pleno movimento feminista, Linda Nochlin publicou um artigo intitulado “Why Have There Been No Great Women Artists?” (Por que não houve grandes mulheres artistas?) em que ela aponta uma inclinação das instituições em privilegiar a “genialidade” masculina. Após 30 anos da publicação desse artigo, em uma revisão histórica, a autora diz que a historiografia da arte mudou muito depois da incorporação de visões sobre a História da Arte e das mudanças de paradigmas que abandonam a arte focada nos grandes mestres. Além disso, ela ainda afirma que estas foram contribuições do feminismo para a arte contemporânea. O impacto do movimento feminista, somado às lutas dos homossexuais e negros (ou seja, as minorias) e mais essa semente plantada por Nochlin em 1971, trouxe novos rumos para a visibilidade das mulheres na arte. O conceito histórico-artístico que se criou com as presenças importantes de vários nomes, como Marcel Duchamp (foco direcionado para o artista e suas intenções e não mais para o objeto), Frida Kahlo (perspectiva biográfica), Louise de Borgeois (história pessoal como fonte de criação) e mais o surgimento paralelo da arte conceitual (final dos anos 1960) começariam a alterar esse cenário hermético para as artistas mulheres do século XX.
Até hoje, as artistas mulheres enfrentam dificuldades para se engajar no mundo da arte e do cânone. Nos últimos anos, o questionamento sobre o papel da mulher na sociedade tem estremecido as bases sociais do patriarcado. O feminismo e o feminino estão em alta, muito se fala sobre empoderamento, sororidade (união entre mulheres baseada na empatia e no companheirismo, em busca de alcançar objetivos em comum) e girl power (poder feminino). O conceito da sororidade está fortemente presente no feminismo, sendo definido como um aspecto de dimensão ética, política e prática desse movimento de igualdade entre os gêneros. Do ponto de vista do feminismo, a sororidade consiste no não julgamento prévio entre as próprias mulheres que, na maioria das vezes, ajudam a fortalecer estereótipos preconceituosos criados por uma sociedade machista e patriarcal.
Parece que neste momento até mesmo museus tradicionais abriram as suas portas para as mulheres artistas. Será que finalmente os gritos por igualdade foram ouvidos? Um fato é certo – estão acontecendo muitas exposições de artistas mulheres em museus do mundo inteiro. No entanto, existe uma evidência que não pode ser mudada, pois a história de tantas artistas deixou de ser contada. São páginas arrancadas e irremediavelmente impossíveis de serem inseridas nos livros de História da Arte. As lacunas existem e persistem. Daqui para a frente, as histórias precisam ser contadas. Não se pode mais aceitar negligenciamentos.
Desde 2013, quando exerci a função de curadora-chefe do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em que a direção era do historiador de arte e curador Gaudêncio Fidelis, procuro aplicar um “modelo labiríntico” de exposições que havia sido introduzido por ele a partir de 2011 e usado em grandes exposições que mesclavam obras do acervo da instituição e obras de artistas que ainda estão produzindo. A escolha de obras em uma disposição não cronológica e dentro desse modelo labiríntico de curadoria trouxe uma condição de inovação às exposições.
A justaposição de obras em um arranjo não cronológico, segundo Fidelis (2014), significa: “[...] uma abordagem não cronológica das obras, realizadas através de justaposições que produzem contrastes, confrontos ou paralelismos”. Na época, o programa curatorial do museu foi instituído para promover a exibição contínua da coleção de forma original e sistemática e sigo usando essa plataforma, pois a comunicação aberta ao visitante por meio das obras e de sua expansão artística, conceitual e formal trouxe uma experiência qualitativa de observação das obras no espaço museológico.
Usar o modelo labiríntico em uma exposição significa:

Uma exposição de caráter labiríntico articula conceitualmente a produção em uma equação de espacialização, alterando a costumeira percepção que temos de determinada obra, introduzindo novos mecanismos de exibição no contexto expositivo. Medidas como adoção de um procedimento não cronológico na exposição das obras, deslocamento delas em relação ao seu lugar tradicional de exibição, considerando-se disposição espacial, quebra de hierarquia por modalidade artística, relevância, status canônico, escala e localização semântica (ausência da base para a exibição de esculturas, por exemplo, e a criação de outros mecanismos), constituem o fundamento do método adotado em uma exposição com esse caráter. Para construir uma exposição de caráter labiríntico, seria necessário transformar o espaço vazio em um campo de propriedades labirínticas, e tal construção precisa antes de tudo ser criada através das obras. (FIDELIS, 2014, p. 25)

Então, trazer ao Museu Oscar Niemeyer uma exposição de 40 artistas mulheres do Rio Grande do Sul e colocá-la a público por meio de uma plataforma curatorial inovadora tem como potência dois aspectos: trazer um conjunto de obras com qualidade excepcional para legitimar a produção de artistas mulheres e apresentar uma nova forma de o visitante extrair uma experiência única do aparato museológico, das obras e da relação entre elas.
O assunto tem sido explorado por mim em relação às artistas mulheres do Rio Grande do Sul desde 2014, quando realizei no Museu de Arte do Rio Grande do Sul-MARGS a exposição “Útero, Museu e Domesticidade – Gerações do Feminino na Arte”, em que mais de 50 artistas mulheres participaram desse importante registro e catálogo e puderam doar obras ao museu, aumentando o número de artistas mulheres em seu acervo. Em 2018, no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, realizei “Placentária”, exposição com mais de 50 nomes atuantes na arte do Estado. A exposição foi registrada em catálogo com o mesmo título. Em 2019, “Placentária” foi apresentada também na Galeria Municipal de Arte Gerd Bornheim da Casa de Cultura de Caxias do Sul (RS). Em 2019, foi a vez da exposição “As Canibais: Artistas e o Exercício das Imagens”, no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, também registrada em catálogo. A exposição “Mulheres no Plural” (2019-2020) aconteceu na Galeria Duque Espaço Cultural, com 47 artistas mulheres, e reivindicou o direito das mulheres de serem reconhecidas e legitimadas e ainda terem a possibilidade de inserção no mercado de arte. Em 2022, a exposição “Presença Feminina: Artistas Mulheres e o Caminho da Experimentação”, realizada na Casa das Artes Villa Mimosa, em Canoas, contemplou a produção de 16 artistas mulheres.
Atenta à luta das artistas, pretendo continuar realizando exposições que evidenciem os seus trabalhos e possam lhes dar o reconhecimento e a visibilidade como artistas para que suas obras se situem não à margem, mas no centro e sejam incluídas na História da Arte do Rio Grande do Sul e do Brasil.

Ana Zavadil – curadora

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